já falei muito das dores, agora eu quero fazer uma oração
já pedi desculpas. já enlutei minhas mortas. já revisitei meus demônios. já pedi ajuda a deus, aos demônios e entidades fora disso. já admiti minha culpa. já culpei os meus algozes. já me entendi morta. já me disse medrosa. já me coloquei em prol da revolução. já falei do amor. já analisei a história, a ciência, a religião, a pedagogia, meus pais, as outras famílias, a filosofia e a sociedade. já apontei as mentiras da política. já falei da resistência e do amor e do autocuidado. já agradeci as nossas ancestrais, aos nossos teóricos, a Marx, Lenin, Fanon, Lelia, bell, Carneiro, Foucault, Butler, Mombaça, Linn, e todas, todos, todes que vieram antes. já li os livros, e falei dos autores. já entendi o mundo e suas estruturas e suas dinâmicas de poder, e todo o mal, e todo o bem.
mas agora eu quero fazer uma oração.
quero falar da dor sem culpa, e do amor sem revolução. quero falar dos amigos que eu amo, e que eu temo perder, e que eu não sei como demonstrar o amor, e que por isso eu sofro. quero falar dos meninos que amei, e que não me amaram, ou que talvez me amaram, e os que eu ainda não sei. quero falar da minha vó e da minha mãe, de tudo que eu tenho para agradecer, mas de todas as coisas que me fizeram chorar, de toda incompreensão sem que isso seja reparação. quero falar de toda teoria que eu consumi tentando me salvar, mas da salvação que eu encontrei na festa de aniversário de um amigo, numa onda de bala, e numa história da minha avó. quero falar da vida, mas sem tornar ela uma superioridade moral, sem fingir que agora eu sou mais feliz, mais real, mais livre, porque usei um hormônio, descobri a não-monogamia, me assumi gay para os meus pais, sem fingir que tudo é ótimo porque eu abandonei as amarras da Heterossexualidade. quero dizer do meu medo, da minha baixa autoestima, e da minha solidão, sem que isso vire um discurso sobre os nossos corpos. quero ser mais que um corpo e menos que um Sujeito. quero que minhas irmãs possam sorrir, mas que esse sorriso não seja uma obrigação. quero que nossas dores parem de ser televisionadas ou usadas como material político, mas que não sejam menos escutadas por isso. quero uma revolução que nos considere como composição e não apêndice. quero me declarar para alguém sem que isso passe por todas as dinâmicas de subordinação e violência, mas sem que isso seja uma fantasia a dois em que fingimos não ter raça, gênero ou classe. quero ter filhas e filhas e filhas sem ter família alguma, mas sem abandonar a possibilidade de formar núcleo, e casa, e rede. quero dizer eu te odeio para um homem branco sem que isso seja ressentimento, sem que eu pareça vítima eterna, pois eu também tenho direito de sentir, e de odiar, e de ser atravessado por sentimentos além das estruturas condicionantes das nossas posições políticas. queria falar do amor, da graça, do perdão, das escolas dominicais sem que tudo seja trauma religioso. quero fazer da minha vida toda uma oração sem que isso signifique ser puro, limpo, feliz, agradável. quero fazer da alegria e da tristeza sentimentos e não posições políticas. quero fazer da minha identidade justamente o que ela é, uma representação da minha posição política, e fazer da minha vida pessoal um espaço impossível de se identificar.
eu não quero mais ter de reclamar, ou me justificar, ou ser feliz. eu quero ter esperanças, sem que isso seja fantasiar sempre um mundo porvir. quero ter esperanças no agora, viver um agora, e imaginar um futuro ancestral. quero tudo isso sem o peso de estar certo.
se eu for falar de qualquer coisa que não seja dor, será de todas nós. chorei muito das minhas lagrimas, falei muito de mim. agora farei uma oração como o fez Linn.